.:Bacanices.:

Quem sai aos seus não degenera.

Eu venho de uma família católica, fui batizada, fiz primeira comunhão, crisma…Cresci tendo o domingo como dia de ir à missa e nem rolava discussão, era assim e sempre foi assim. A roupa nova era guardada para ser estreada no domingo e até hoje, sei de cor as músicas que tocavam nessa época e que, ao primeiro acorde, já me vêem inteiras à mente junto com um monte de lembranças. Pra mim, o símbolo máximo de devoção da família era (é e sempre será) a minha Vó Benedita. Ela consagrou todas as suas filhas à Nossa Senhora e todas elas trazem o nome de Maria. Até seu último suspiro, ela reafirmou sua fé. Ela jamais começava ou encerrava seu dia sem rezar o terço e ô terço demorado, mas era nessa hora que ela intercedia por cada um de nós. Fora a consagração à Nossa Senhora pelo rádio todo santo dia às 6 da tarde. E na quaresma é impossível não me lembrar dela e das tradições que ela deixou gravadas em nós. Acabei de chegar da missa de Ramos e o tempo todo fiquei me lembrando dela. A quaresma não era um tempo qualquer, mas um tempo cheio de ritos e simbolismo e respeito e devoção. Enquanto ela pôde, fazia jejum e ficava sem comer carne os 40 dias. Depois, só por questões de saúde, ela foi sendo obrigada a restringir isso, mas não abria mão de não comer carne toda quarta e sexta por todos os 40 dias e se abster de carne durante toda a Semana Santa, começando no Domingo de Ramos. Em casa minha mãe mantém viva essa tradição e eu aqui faço isso também e nem coloco na cota das penitências. É mais uma reverência à minha vó e sua fé. Quando eu morava em Poços, toda quarta e sexta minha mãe defumava a casa e até hoje adoro o cheiro da defumação com os ramos bentos no domingo de ramos do ano anterior. E toda vez era a mesma coisa. Minha mãe acendia um foguinho bem mixuruco e defumava a casa com uma fumacinha de nada. Terminada a defumação lá de casa era minha função levar a latinha pra minha vó defumar a casa dela e era hora de um espetáculo. Com a maestria de quem dominava a arte do fogo, minha vó turbinava a defumação. Minha mãe e eu penávamos até pra ascender um foguinho e ela em segundos fazia um fogaréu e um fumação. Ficava até difícil respirar e ela ria do nosso foguinho. Então, com toda a fé que lhe era peculiar, ela defumava, em oração, toda a casa. Abria o guarda roupas, os armários de mantimentos e cumpria com total sacralidade esse ritual. Minha mãe sempre improvisou uma latinha, mas assim que pude, comprei um turíbulo e fico imaginando que minha vó bem ia gostar disso. Hoje, não passo a quaresma em Poços, mas faço, sempre que possível, o ritual aqui no meu apartamento e sempre ligo pra lembrar minha mãe que é dia de defumar a casa. Quem assumiu meu posto foi o Pedro e ele o faz com tanta alegria que acho mesmo que minha vó deve ficar orgulhosa de ver a novíssima geração da família seguindo seus passos e mantendo a tradição acesa. Eu adoro todas essas tradições e rituais e acho uma pena que tenham se perdido no caminho. Essa semana mesmo comentei com a minha mãe que nos restaurantes e quem faz marmita nem oferece uma opção pra quem não come carne nesses dias, de tão raro que virou. Todo ano escuto muita gente dizendo que tudo isso é bobeira. Já não discuto mais e acho triste que a vida venha perdendo seus rituais e lindas oportunidades de fortalecermos a fé e os laços de família. Não! Deus não precisa de nada disso, mas nós precisamos. E quer saber? Acho que Ele fica bem felizão quando vê essas tradições sendo mantidas. Mas de novo, Ele não precisa de nada disso. E que pena que não percebamos o presente de todos esses rituais. A quaresma mesmo é um roteiro de fé perfeito para a vida. É uma estação de fortalecimento e preparação para o ano que vem à frente repleto de desafios. Nesses 40 dias podemos viver a experiência de atravessarmos nossos desertos pessoais, de nos penitenciarmos para que quando a vida nos penitenciar tenhamos gravado no coração que somos maiores que qualquer provação, de exercitarmos a caridade e olharmos para o próximo e para nós com olhos de amor e compaixão, de lembrar nossa humanidade e nossa fragilidade. Hoje, durante as leituras fiquei pensando que ainda somos iguais às pessoas que, num dia ovacionaram Jesus entrando na cidade e depois, influenciados por pessoas preocupadas apenas com seus próprios interesses, o condenaram à morte. A paixão, morte e ressurreição de Jesus é um claro exemplo de fé, entrega, confiança e, sobretudo, que a última palavra é vida e não morte, é amor e não dor e é ressurreição. Que possamos todos viver uma santa quaresma, com fé, com a certeza de que, em qualquer circunstância da vida, a última palavra é sempre Dele que pode e faz novas todas as coisas, mas que com amor de Pai, respeita nossas escolhas e nossas decisões, até de achar tudo isso uma grande bobeira. Eu acho que dei muita sorte de ser neta da Vó Benedita e tenho muito orgulho de manter todas as tradições que eram testemunho de sua fé vivas. Tenho certeza que ela tá lá no céu rindo do foguinho mais ou menos que eu acendo pra defumar a casa, do sono que eu passo o dia depois de acordar 4:30 da manhã pra procissão da penitência, da vontade que eu passo de tomar refri, mas orgulhosa que só da sua neta! Quem sai aos seus não degenera!

 

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