Chove lá fora e aqui começo a cantarolar uma das minhas preferidas da Legião: “E mesmo sem te ver
Acho até que estou indo bem/Só apareço, por assim dizer/Quando convém aparecer/Ou quando quero…
Quando quero…” Há anos posto essa canção sempre na intenção de rabiscar o sol que a chuva apagou. Não gosto de chuva, mas eis que ela existe e chove quando bem entende. Assim também acontece com vários sentimentos que não gosto, mas eles “sentem” quando bem entendem. Essa semana estou às turras com um sentimento racionalmente bobo e emocionalmente devastador: sentir que desperdiçamos em larga escala o nosso mais genuíno afeto. Aquele que, como diz o Nando, a gente guardou, sem ter porquê, nem por razão ou coisa outra qualquer… Guardamos porque achamos que ele era um bem precioso e esquecemos que muito provavelmente pode sempre vir a significar nada pra outro alguém e na maior parte do tempo, tá tudo bem e a gente tira isso de letra, depois de certa experiência. Mas naquela partezinha sorrateira de um fim de tarde com tempo chuvoso, não tá nada bem. Uma foto, um prato, um texto e lá vamos nós nos refugiarmos no minúsculo buraquinho existente na parede da maturidade e do bom senso e lá nos miniaturizamos (sei lá se isso existe). Mas lá, encontramos espaço para sermos uma versão bem pequena do melhor que já conseguimos ser. Lá somos birrentos e aquele machucado que até cicatrizou chega a quase sangrar de novo, só de sacanagem. Lá, achamos que seria justo um manifesto pela imediata restituição do afeto, aquele nosso afeto tão precioso e guardado e desperdiçado e menosprezado. Lá, nos sentimos como as criaturas mais injustiçadas. Lá, nessa versão miniatura e reducionista nossa, desejamos o olho por olho, dente por dente e que todo o mal que um dia nos foi feito volte como um bumerangue certeiro bem no meio da testa do infeliz. E lá, achamos que tudo bem sentir tudo isso. Só que lá, pode ser, no máximo, um breve refúgio para um fim de tarde chuvoso, mas jamais o nosso lugar de pertencimento. Nada, nem ninguém, nem lugar algum que nos diminua nos pertence. E esse sentimento de afeto desperdiçado não é lá tão merecedor da nossa atenção. Afora esse buraquinho, sabemos de cor e salteado que o afeto ofertado nunca é desperdiçado. Afeto ofertado jamais pertenceu a qualquer outra pessoa que não ao emissor desse afeto. Desperdício seria esse afeto continuar guardado sem ter porquê…ou coisa outra qualquer. Nem sei mais se isso faz sentido, mas sei que ainda faz sentir. Lá fora ainda chove…por aqui ainda cantarolo Legião: “Quero que saibas que me lembro/Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte/E, pra ser honesto só um pouquinho infeliz…” Sigo rabiscando o sol que a chuva apagou, rasgo o manifesto e sorrio de canto de boca: “Chuva faz a gente sentir cada coisa!” … “Mas tudo bem, tudo bem, tudo beeemmm…” Sim, tá tudo bem…